Equivoca-se quem pensava (mesmo entre os cardeais que o elegeram) que poderia reduzir o papa Francisco à figura transitória e bondosa de um xerife encarregado de fazer limpeza na Cúria Romana.
Por Massimo Faggioli
A entrevista do papa Francisco ao padre Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica, traduzida e publicada simultaneamente pelas revistas dos jesuítas de todo o mundo, revela muito, se não tudo, de Jorge Mario Bergoglio e do papa Francisco.
A tradução de um texto (e de um texto tão longo, quase 12 mil palavras em inglês) sempre é um ato de interpretação e, como primeiro tradutor (dos cinco que editaram a versão em inglês), não é fácil para mim falar da entrevista do papa sem cair na tentação de superinterpretar um texto que é muito transparente e fala a todos com imagens muito claras: a Igreja como hospital de campanha, o ministério pastoral como tratamento das feridas, a fé cristã como caminho.
A excepcionalidade do documento fala muito da excepcionalidade do momento atual na história da Igreja contemporânea. Um documento fora do comum pelo gênero literário (tem o valor de uma encíclica mais uma entrevista), pela linguagem utilizada (pastoral, mas repleta de referências à tradição bíblica e teológica), pela franqueza ao falar dos fracassos pessoais do papa de Roma (de um provincial dos jesuítas muito jovem e autoritário, ao papa que diz "nunca fui de direita").
Equivoca-se quem pensava (mesmo entre os cardeais que o elegeram) que se poderia reduzir o Papa Francisco à figura transitória e bondosa de um xerife encarregado de fazer limpeza na Cúria Romana. Bergoglio está fazendo limpeza também na linguagem e no estilo da Igreja, colocando de lado as ideologizações típicas de um catolicismo comunitarista e excludente, e removendo vários álibis: dos profetas da união catolicismo-conservadorismo, dos advogados de uma modernização tout court da Igreja, e daqueles que veem no catolicismo uma tradição apagada, curvada e raivosa com relação a eles e com a complicada vida real da pessoa humana no mundo de hoje.
O efeito de desorientação é particularmente visível no mundo dos órfãos do ratzingerianismo, que sempre foi muito menos refinado do que Ratzinger: o jornal Il Foglio e os paralefebvrianos aqui na Itália, como o vaticanista do L´Espresso (sic!) Sandro Magister; os latinizantes no vasto universo católico; os apologetas do americanismo católico nos EUA (o filósofo Robert George, os bispos Tobin e Chaput, ideólogos como George Weigel).
Depois dessa entrevista, caiu toda ilusão de poder redimensionar Bergoglio e de poder fazer dele um cômodo instrumento para batalhas de parte: contra a Cúria Romana, contra Bertone, contra Ruini, e contra Bento XVI, se é por isso.
Muitíssimos aspectos mereceriam ser retomados e analisados nessa autobiografia teológica do primeiro papa global, sob a forma de uma entrevista longa com 12 mil palavras: do ponto de vista teológico, o centro é a ideia de uma Igreja que se submete ao Evangelho (não às ideologias) e de uma Igreja que se concebe como um hospital de campanha que aceita todos os feridos e não só aqueles que gostaria de ter, porque ela mesma é feita de feridos.
O papa Francisco fala aqui como ferido, como pecador, antes do que como médico e como papa. Retorna a ideia do papa João XXIII de uma Igreja que deve usar "o remédio da misericórdia", a mesma misericórdia que a Igreja e os cristãos usaram com o jovem Bergoglio, especialmente no período posterior o seu cargo como provincial: um período de profundos repensamentos, quase como uma crise existencial dentro do seu percurso de cristão, de padre e de jesuíta. Os fracassos pessoais de um papa, cristão pecador como os outros, deixam de ser uma figura retórica e se tornam, com essa entrevista, um elemento biograficamente tangível, humanamente narrável, que não requer procedimentos hermenêuticos particulares, por ser fácil de se aproximar da experiência pessoal de cada um.
O papa Francisco foi eleito, seis meses e uma semana atrás, em um dos momentos de fraqueza mais graves na história do catolicismo contemporâneo: o historiador diria que, depois de uma longa série de 20 de setembro de 1870 [a tomada da Porta Pia, fim do Estado pontifício], o day after da entrevista do Papa Francisco era finalmente o 20 de setembro de 2013. O teólogo diria, com São Paulo, "quando sou fraco, então é que sou forte".
A entrevista do papa Francisco ao padre Antonio Spadaro, diretor da Civiltà Cattolica, traduzida e publicada simultaneamente pelas revistas dos jesuítas de todo o mundo, revela muito, se não tudo, de Jorge Mario Bergoglio e do papa Francisco.
A tradução de um texto (e de um texto tão longo, quase 12 mil palavras em inglês) sempre é um ato de interpretação e, como primeiro tradutor (dos cinco que editaram a versão em inglês), não é fácil para mim falar da entrevista do papa sem cair na tentação de superinterpretar um texto que é muito transparente e fala a todos com imagens muito claras: a Igreja como hospital de campanha, o ministério pastoral como tratamento das feridas, a fé cristã como caminho.
A excepcionalidade do documento fala muito da excepcionalidade do momento atual na história da Igreja contemporânea. Um documento fora do comum pelo gênero literário (tem o valor de uma encíclica mais uma entrevista), pela linguagem utilizada (pastoral, mas repleta de referências à tradição bíblica e teológica), pela franqueza ao falar dos fracassos pessoais do papa de Roma (de um provincial dos jesuítas muito jovem e autoritário, ao papa que diz "nunca fui de direita").
Equivoca-se quem pensava (mesmo entre os cardeais que o elegeram) que se poderia reduzir o Papa Francisco à figura transitória e bondosa de um xerife encarregado de fazer limpeza na Cúria Romana. Bergoglio está fazendo limpeza também na linguagem e no estilo da Igreja, colocando de lado as ideologizações típicas de um catolicismo comunitarista e excludente, e removendo vários álibis: dos profetas da união catolicismo-conservadorismo, dos advogados de uma modernização tout court da Igreja, e daqueles que veem no catolicismo uma tradição apagada, curvada e raivosa com relação a eles e com a complicada vida real da pessoa humana no mundo de hoje.
O efeito de desorientação é particularmente visível no mundo dos órfãos do ratzingerianismo, que sempre foi muito menos refinado do que Ratzinger: o jornal Il Foglio e os paralefebvrianos aqui na Itália, como o vaticanista do L´Espresso (sic!) Sandro Magister; os latinizantes no vasto universo católico; os apologetas do americanismo católico nos EUA (o filósofo Robert George, os bispos Tobin e Chaput, ideólogos como George Weigel).
Depois dessa entrevista, caiu toda ilusão de poder redimensionar Bergoglio e de poder fazer dele um cômodo instrumento para batalhas de parte: contra a Cúria Romana, contra Bertone, contra Ruini, e contra Bento XVI, se é por isso.
Muitíssimos aspectos mereceriam ser retomados e analisados nessa autobiografia teológica do primeiro papa global, sob a forma de uma entrevista longa com 12 mil palavras: do ponto de vista teológico, o centro é a ideia de uma Igreja que se submete ao Evangelho (não às ideologias) e de uma Igreja que se concebe como um hospital de campanha que aceita todos os feridos e não só aqueles que gostaria de ter, porque ela mesma é feita de feridos.
O papa Francisco fala aqui como ferido, como pecador, antes do que como médico e como papa. Retorna a ideia do papa João XXIII de uma Igreja que deve usar "o remédio da misericórdia", a mesma misericórdia que a Igreja e os cristãos usaram com o jovem Bergoglio, especialmente no período posterior o seu cargo como provincial: um período de profundos repensamentos, quase como uma crise existencial dentro do seu percurso de cristão, de padre e de jesuíta. Os fracassos pessoais de um papa, cristão pecador como os outros, deixam de ser uma figura retórica e se tornam, com essa entrevista, um elemento biograficamente tangível, humanamente narrável, que não requer procedimentos hermenêuticos particulares, por ser fácil de se aproximar da experiência pessoal de cada um.
O papa Francisco foi eleito, seis meses e uma semana atrás, em um dos momentos de fraqueza mais graves na história do catolicismo contemporâneo: o historiador diria que, depois de uma longa série de 20 de setembro de 1870 [a tomada da Porta Pia, fim do Estado pontifício], o day after da entrevista do Papa Francisco era finalmente o 20 de setembro de 2013. O teólogo diria, com São Paulo, "quando sou fraco, então é que sou forte".
Europa, 21-09-2013.
* Massimo Faggioli é historiador e professor de história do cristianismo da University of St. Thomas, em Saint Paul, nos EUA.
0 comentários:
Postar um comentário