Uma igreja e dois papas

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014

Devemos a Bento XVI termos agora essa esperança da Igreja que sonhamos.
Por Maria Clara Bingemer*

Era uma segunda-feira de Carnaval, oito horas da manhã e eu dormia em Petrópolis, Estado do Rio. Fui acordada pelo telefonema da jornalista que me pedia para falar sobre a renúncia do Papa.  Ao perguntar "que papa?", ela viu que eu ignorava ainda a notícia e disse que telefonaria depois.  Liguei a televisão e fui submergida em espanto: Bento XVI havia renunciado.  E dia 11 de fevereiro fez um ano que isto aconteceu. Imediatamente senti que aquilo era algo positivo, e que havia a mão de Deus por trás do gesto do papa. 

As opiniões em volta não podiam ser mais contraditórias.  Muitos se encontravam chocados.  Nunca se havia visto tal coisa: um ´papa renunciar. A insegurança se apoderava das pessoas. E o mundo, que até então ia progressivamente deixando de prestar atenção à muito antiga instituição chamada Igreja Católica, agora voltava atento seus olhos para Roma? Depois disso foi o que se sabe e o que se viu.  As semanas do Conclave e a Igreja Católica ocupava as manchetes da principal mídia todos os dias.  Nunca menos de quatro páginas, podendo chegar a doze.

Um desmentido rotundo à profecia de que a religião não interessa a mais ninguém, que perdeu seu papel na sociedade etc. E depois veio o -  primeiro, suave e depois fortíssimo -  " boom" Francisco, de cujos efeitos vivemos até hoje. A figura do intelectual refinado Bento XVI, que ocupava o centro do mundo eclesial foi conhecendo um lento e suave "fading out". 

Conforme suas próprias declarações ao despedir-se de Roma e da Sé de Pedro, o papa Bento faz agora, nesta fase final de sua vida, aquilo de que mais gosta: rezar e dedicar-se ao estudo da teologia e à música. 

Os que conhecem o estilo do Papa Emérito sabem da influência beneditina sobre sua espiritualidade.  Na verdade, Bento XVI sempre foi um monge, e isso o aproxima de um seu antigo predecessor, o único Papa na história da Igreja Católica que renunciou ao mandato antes que este chegasse ao fim: Celestino V. Tinha tal nostalgia da vida monástica que não suportou o papado. Parece que isso aconteceu outra vez há um ano. Levando vida monástica, Bento XVI vive retirado, não interfere no pontificado de Francisco, embora se diga que este o consulta repetidas vezes sobre muitos assuntos.

Mas parece que efetivamente faz o que prometeu: dedicar-se à oração, ao estudo e à música.  E no centro de suas preces certamente estão a Igreja e seu sucessor, Jorge Mario Bergoglio, primeiro papa latino-americano e jesuíta. Enquanto isso, Francisco não para. Tanto que é difícil acompanhá-lo. A cada dia uma novidade, uma surpresa, uma ideia. 

E o mundo o segue encantado.  Mudou a imagem da Igreja não em meses, mas em dias. E caminha para o primeiro aniversário de seu pontificado com a popularidade certamente em alta, apesar de, evidentemente, contar com alguns opositores. Não chegam a atrapalhá-lo. 

O papa que veio do fim do mundo é firme e resistente. E tem treino missionário dos bons, ótimos. É difícil abalá-lo e quebrar seu sorriso e sua energia. E é providencial que assim aconteça: é muito o trabalho que tem pela frente. E todo esse imenso trabalho, tão necessário, indispensável mesmo, Bento XVI viu que não podia realizar. E em vez de aferrar-se ao cargo e continuar, teve a nobreza, a coragem, a imensa estatura espiritual de renunciar, afastar-se, deixar o espaço para outro.  Raras vezes se viu tamanho gesto de desprendimento pessoal e amor à Igreja.

E esta deverá sempre ser grata a este papa, que sofreu tanto em seus poucos anos de pontificado e o terminou com um gesto tão belo e evangélico, abrindo um precedente que poderá aproximar muito mais a Igreja do sonho de Jesus e de Deus seu Pai: não ser lugar de poder, mas de serviço. Hoje, o papa Francisco pediu orações por seu antecessor.  É evidente que todos nos animaremos a atendê-lo. 

Devemos a Bento XVI termos agora essa esperança da Igreja que sonhamos.  E sonhar esse sonho amparados por dois irmãos, dois servidores, dois pastores, dois bispos de Roma que presidem as outras igrejas na caridade.  É realmente uma enorme graça ter um papa agindo e outro orando, um papa trabalhando, viajando, e outro contemplando, um papa visível e o outro recolhido, acompanhando de longe mas tão perto. No aniversário de sua renúncia, só podemos dizer obrigada. Que o Senhor culmine de bênçãos seus últimos anos e que possa ver os frutos de seu gesto de amor à Igreja de Cristo.  Amém.
SIR/Jornal do Brasil, 13/02/2014
*Maria Clara Bingemer, professora do Departamento de Teologia da PUC-Rio, é teóloga e autora de "O mistério e o mundo - Paixão por Deus em tempo de descrença", Editora Rocco.

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