Porque questionar é viver

domingo, 28 de setembro de 2014

Por Enzo Bianchi

Habitam em nós, humanos, muitas perguntas, sentimos um desejo de conhecer, de saber, de comunicar, que nos incita a lançar perguntas. É coerente que as crianças, não mais bebês, façam continuamente perguntas, para conhecer o mundo em que estão inseridas. Os pais sabem bem: mais perguntas que afirmações... O humano é um ser que interroga e se interroga, procurando resposta.

Mas as perguntas são muito mais decisivas do que as possíveis respostas, que nem sempre são satisfatórias. Se Platão fez Sócrates dizer que “o maior bem do homem é interrogar-se sobre si mesmo e, sem tal feito, a vida não é digna de ser vivida” (Apologia de Sócrates – 38 a), podemos levar essa consideração a todas as perguntas fundamentais a respeito da condição humana.

Rainer Maria Rilke, antes de completar 30 anos, escrevia em 06 de julho de 1903 em uma esplêndida carta ao jovem poeta Franz Kappus:

"Caro senhor, Vossa Senhoria é tão jovem, e se encontra assim tão no começo, que o melhor que eu posso pedir, caro amigo, é de que tenha paciência com tudo aquilo que não está solucionado no seu coração, e de tentar amar as próprias perguntas, como se fossem de um quarto escuro a um claro, ou dos livros escritos em uma língua estrangeira. Não pesquise agora as respostas que não lhe possam ser dadas, porque não está pronto para vivê-las... Então, viva com as perguntas. Quem sabe um dia, futuramente, pouco a pouco, sem perceber, se encontrará vivendo as respostas... Nossa missão é difícil, mas quase tudo o que é importante é difícil, e tudo é importante"

Rilke aconselha o jovem de amar as perguntas – ousarei especificar – mais do que as respostas, porque as vezes as respostas não existem ou não sabemos como encontra-las, mas os questionamento surgem, nos habitam, nos movem, nos fazem buscar. E existem questionamentos que são feitos pelos outros, para que possamos ouvir, ou, ao contrário, homem ou mulher, nos oferecer sua face. A face, que na espécie humana é única, é distinta de cada pessoa, e que os nossos olhos veem, encontram, leem, conhecem ou reconhecem, é uma pergunta, como sabia frisar com maestria Emmanuel Lévinas.

Permitam-me de recordá-los um outro grande autor, pra mim um grande mestre: Edmond Jabés, que não por acaso escreveu “Le Livre des Questions” (1963), O Livro das Perguntas, no qual este intelectual hebreu insere questionamentos e procura responde-los, mas somente por pequenas frases, sucintas, quase aforismos, de tal forma que a pergunta continua aberta, e ressoam de novo, de novo...

Sim, o nosso coração humano é habitado por perguntas: de onde venho? Pra onde vou? Quem sou eu? Isso que cerca é real? E entre todas as perguntas, a mais grave: porque a morte me espera? É do profundo, do nosso íntimo, daquele órgão imaginário e simbólico que chamamos “coração”, sem saber direito onde colocá-lo, que surgem pensamentos bons e maus, dos quais são desencadeados os desejos, o querer, o fazer. Existe uma afirmação do profeta Jeremias que sempre me intrigou: “O coração do homem é complicado e doentio; quem o pode compreender?” (Jr 17,9). A fonte das nossas perguntas é complicada e doentia, porque viemos ao mundo a partir de um homem e uma mulher que já se conheceram em meio a males e complicações e, nenhum de nós nasce “sem bagagem”... A nossa existência é decorrente da relação com as nossas raízes, ao que nos precedeu e ao que nos gerou, e é originalmente formada pela nossa história, pelo nosso viver em tempo e lugar precisos.

As perguntas, portanto, geram um ambiente complexo e vario por qualquer um de nós, e é neste terreno que nossa vontade pessoal poderá decidir entre o bem e o mal, pode discernir as perguntas e escolher um posicionamento frente a uma resposta ou deixa-las cair. O nosso caminho de humanização depende antes de tudo deste discernimento pessoal, do nosso compromisso em viver numa lógica de bem comum e de resistência ao amor a si próprio, ao egoísmo de quem vive sozinho ou até mesmo contra os outros.

As perguntas que habitam na gente determinam a qualidade com a qual vivemos e convivemos.

Anteriormente eu me lembrava de perguntas que todo ser humano digno deste nome faz a si mesmo, bem expressas pelo gnóstico Teodoto na metade do século II D.C.: “Quem sou eu? De onde venho? Pra onde vou? A quem pertenço? De que coisas posso ser salvo?” (de acordo com Clemente Alessandrino, Extratos de Teodoto 78; pg. 9.696).

A Bíblia também testemunha questionamentos, sejam relacionados a Deus, pelo homem, sejam do homem, por Deus. Neste diálogo entre o homem e o Outro – que chamamos Deus -, nessa relação que vem desde o início da humanidade e continua ao longo da história, existem muitas perguntas. É conhecido que as perguntas do homem se reduzem, de acordo com suas diversas expressões, a apenas uma: “Oh Deus, nos dará a salvação e nos liberarás da morte?”. As perguntas que Deus faz ao homem, ao invés, são diferentes. A primeira é aquela existente no livro de Gênesis, onde Deus procura o homem que se afastou Dele e o chama: “Adão, onde estás?” (Gn 3,9). Pergunta que questiona o homem em todos os tempos e todas as gerações: onde estás? Que significa: a que ponto do caminho de humanização te encontras? És um homem que todos os dias vence o caráter animalesco que possuis, ou estás sobre um caminho de barbáries, de desumanização, de bestialidade? Ou ainda, citando o comentário de Martin Buber na verdadeira jóia que é O caminho do homem: “Onde estás no teu mundo? Dos dias e anos que te foram dados e já transcorreram... neste meio tempo até onde chegaste no teu mundo?” (Qiqajom, Magnano 1990, p. 18).

Na criação do homem, Deus disse: “Façamos o homem” (Gn 1,26), onde o ‘nós’ – dizem os rabinos – significa que Deus e o homem, juntos, devem fazer o homem, porque o homem se faz mais homem somente com a ajuda do outro, e o Outro com ‘O’ maiúsculo, Deus. Aqui me permito dizer de forma fervorosa uma palavra verdadeira e necessária. Quando se fala em Auschwitz, em Dachau, nos Gulag, ou do massacre das minorias étnicas e religiosas no Iraque ou na Síria pelos jihadistas, sentimos a necessidade de fazer a pergunta: “Onde estava, onde está Deus?”, devemos sentir vergonha e, ao invés disso, nos perguntar: “Onde estava, onde está o homem? Onde estava, onde está nossa humanidade?”, sem atribuir a Deus aquilo que Deus mesmo detesta!

Outra pergunta feita a Deus – atenção, não no início cronológico da história, mas no início de cada vida humana responsável – é: “Onde está Abel, teu irmão?” (Gn 4,9). Depois, a pergunta que é feita a você e que diz respeito a todos os seres humanos, ou seja cada um de nós, por si só, é aquela que atribui ao outro, aos outros, nossos laços pelo vínculo da fraternidade. “Onde está Abel, teu irmão?”, significa “Que relação tens para com o outro? Que responsabilidades sentes com relação ao próximo? Que atenção tens? Ou o renegas, o desconheces, o matas?” Também esta é uma pergunta que não cessa, que todos os dias se renova para todos nós.

La Stampa, 25-09-2014
28/09/2014  |  domtotal.com

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