Homenagem a todos os fiéis defuntos

sábado, 1 de novembro de 2014

O que chamamos de 'céu' não é o contrário do que vivemos nesta terra, mas o acesso à sua verdade.
Por Marcel Domergue*

A festa de Todos os Santos, sendo festejada na véspera do dia de Finados, acaba ganhando um ar um pouco lúgubre, pelo contágio com a lembrança dos Fiéis Defuntos. Com as visitas ao cemitério, as flores tristonhas, etc. Mas eu gostaria de fazer o contrário: gostaria de projetar sobre a lembrança dos nossos mortos a luz de “Todos os Santos e Santas”, a festa da vitória de Deus sobre as forças do mal, festa do sucesso final da humanidade e festa também da solidariedade.

De fato, se rezamos por nossos mortos não é para que Deus lhes conceda algo que não obteriam sem a nossa intervenção: o amor de Deus por eles ultrapassa infinitamente o nosso. O que buscamos é tomar consciência da nossa unidade com eles. Todas as suas falhas passadas são também falhas nossas, e as “virtudes” todas dos que declaramos santos nos pertencem. Em Deus, a humanidade é toda ela una como o próprio Deus é Um. Enfim, a nossa oração pelos nossos mortos deve nos transformar, para que façamos nosso o amor de Deus por eles.

Esse amor é purificador: ele queima o que em nós e neles não é senão palha ou dejeto, para fazer resplandecer o bem, ainda que o mais ínfimo que tenhamos deixado Deus produzir em nós. Como diz Paulo (Efésios 5,13-14): "Tudo o que é condenável é manifesto pela luz, pois é luz tudo o que é manifesto. É por isso que se diz: Ó tu, que dormes, desperta e levanta-te dentre os mortos que Cristo te iluminará".

Uma justiça que justifica gratuitamente

O tema da "vida eterna" assume na Bíblia perspectivas que à primeira vista são contraditórias. Estamos acostumados, por exemplo, com apoio em numerosos textos, a pensar e dizer que a ressurreição é universal; que uns irão ressuscitar para a felicidade e, outros, para a punição. Lemos, no entanto, em outros lugares que todos os homens serão salvos, e vemos o Cristo rezar pelos que o crucificaram.

Além do mais, certas passagens apresentam a ressurreição como destino de alguns e não de todos.  Em Lucas 20,35, por exemplo, Jesus fala de “os que forem julgados dignos de ter parte no outro mundo e na ressurreição dos mortos”. Em Filipenses 3,11, Paulo diz que ele comunga com os sofrimentos do Cristo “para ver se alcança a ressurreição dentre os mortos”.

Para ser assumido na ressurreição do Cristo, parece ser preciso passar por uma morte semelhante à dele, ou seja, fazer de uma morte necessária, uma morte que seja um dom livremente realizado. Penso que as Escrituras estão, muitas vezes, dizendo como as coisas deveriam acontecer, se a justiça fosse exercida normalmente. Mas Deus, na verdade, está muito além do que chamamos de “justiça”. Um texto chave é Mateus 19,24-26 (Marcos 10,23-27).

No versículo 24, lemos: “é mais fácil o camelo entrar pelo buraco da agulha do que o rico entrar no Reino de Deus”. E os discípulos perguntam: “quem poderá então salvar-se?” Jesus responde: “Ao homem isso é impossível, mas a Deus tudo é possível.”

O banquete de núpcias

Alguns textos nos falam, portanto, do que deveria acontecer se tudo se passasse normalmente. Em outros, encontramos o anúncio do que irá acontecer em razão deste Amor inconcebível pelo qual o Cristo, Deus, nos dá a vida dando-nos a sua vida. Sendo assim, podemos agora nos alegrar com a nova vida que foi dada aos nossos mortos.

Nem todos foram "santos", mas encontram-se todos "santificados". Desta vida só podemos ter as imagens simbólicas que a Bíblia nos fornece: ela fala particularmente de um banquete de núpcias. É um banquete perpétuo, porque, nele, a fome e a sede são aplacadas sem cessar e, sem cessar, elas renascem (João 6,35: “Quem vem a mim, nunca mais terá fome, e o que crê em mim nunca mais terá sede".

Já em Eclesiástico 24,21, no elogio da Sabedoria, a figura do Cristo que há de vir, está dito o contrário: "Os que me comem terão ainda fome, os que me bebem terão ainda sede". Este banquete é um banquete de núpcias. Banquete significa uma felicidade compartilhada, tomada em comum. Anunciam-se assim a perfeição da relação com a natureza (alimento) e a perfeição da relação dos homens entre si.

Sendo banquete de núpcias, está-se falando igualmente de se completar a união entre o homem e a mulher que se buscava na sexualidade. Assim sendo, o que chamamos de “céu” não é o contrário do que vivemos nesta terra, mas o acesso à sua verdade e à sua mais plena justiça. Vamos superar as nossas tristezas e, por nossos mortos e por nós, confiar no amor que nos faz existir. Para sempre.
Croire
*Marcel Domergue é sacerdote jesuíta. O texto é baseado nas leituras do Domingo, 2 de novembro de 2014, Dia de Todos os Fiéis Defuntos. A tradução é de Francisco O. Lara, João Bosco Lara e José J. Lara.
01/11/2014  |  domtotal.com

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