Corpo: o de Cristo e o dos outros

terça-feira, 9 de junho de 2015

Maria Clara Bingemer

E mais uma vez a Igreja celebra a festa de Corpus Christi. Nela, toda a comunidade eclesial se reúne para louvar a eucaristia, mistério maior da vida eclesial, que proclama que o pão que partimos e o vinho que bebemos são real e indubitavelmente o corpo e o sangue de Jesus Cristo transubstanciados, feitos ''outra'' substância pela ação do Espírito Santo.

Essa substância ''outra'', radicalmente diferente das humildes aparências do trigo e da uva, são para a fé cristã a própria pessoa do Senhor que se dá em alimento ao povo. Antes de sua morte, Jesus deixou como testamento a seus discípulos e amigos o dom maior da entrega de sua vida nos sinais do pão e do vinho, com os quais celebra sua última ceia. Por não querer permanecer longe daqueles e daquelas a quem amava ardentemente, Jesus deixa a si mesmo, sua pessoa, sua vida como alimento que será a força e a vida do povo que é seu e que o Pai lhe deu desde toda a eternidade. Essa foi a forma amorosa e sublime que o Filho de Deus escolheu para fazer-se presente para sempre em meio aos seus, sendo-lhes sustento, comida e bebida.

Porém, há uma outra forma de presença de Deus no meio de nós que a festa de Corpus Christi nos faz irresistivelmente recordar. Trata-se da corporeidade do outro, da pessoa do semelhante, do sacramento do irmão. O Cristo que comemos e bebemos na eucaristia é o mesmo que está presente no outro que, diante de nós, é seu sacramento, sua epifania. Comer o corpo e beber o sangue do Senhor implicará, portanto, cuidar, reverenciar, respeitar e servir com todo amor, com todas as forças e com toda verdade o corpo do outro que diante de mim revela a presença do Senhor.

Implica sobretudo fazer-se responsável pelo corpo do outro mais carente: do pobre, do órfão, da viúva, do infeliz, do doente, do preso. Cuidar para que nada atinja esse corpo significa lutar para que nada impeça a vida de florescer ali, em plenitude, pois ali está sacramentalmente presente o corpo de Cristo. Parece-me que o momento que vivemos hoje em nossa cidade, nosso país e nosso mundo é propício e instigante para fazer-nos refletir sobre como temos tratado o corpo de Cristo presente e vivo no outro. As bárbaras cenas de violência que temos presenciado ultimamente, e que a televisão e a internet não cessam de brindar-nos, no Oriente Médio, na Líbia, no Iraque ou bem perto, na bela Lagoa Rodrigo de Freitas onde a vida é banalizada e vidas ceifadas com barbárie, confirmam a banalização que a vida humana vem sofrendo nestes últimos tempos.

Tudo isso nos chama a atenção para o fato de que a corporeidade humana - lugar da dignidade e ao mesmo tempo da vulnerabilidade do ser humano - vem sendo sistemática e violentamente profanada. A festa de Corpus Christi nos recorda a dignidade de nossa condição humana, feita de um corpo animado pelo espírito divino. Essa carne frágil e mortal que é a nossa, criada por Deus, foi assumida pelo próprio Deus na encarnação de Seu Filho no tempo e no espaço.    

Jesus, ao dar sua carne para a vida do mundo e deixar-nos seu corpo e seu sangue em alimento, está ao mesmo tempo dizendo-nos qual deve ser nossa atitude diante do corpo nosso e dos outros: respeito e cuidado, delicadeza e proteção, carinho e desvelo. Nunca violência, ataque, brutalização.

A festa de Corpus Christi nos relembra igualmente que se agredimos o irmão, se desrespeitamos o corpo que é semelhante àquele que foi assumido pelo próprio Deus, estamos nos exilando irremediavelmente da comunhão com esse Deus e com seus filhos. Aproximar-se da mesa eucarística para receber o corpo e o sangue de Jesus Cristo, deixando atrás de si um rastro de morte, destruição ou mesmo de omissão e conivência com a violência que assola a cidade, o país e o mundo, é uma escandalosa contradição.

De nada adianta acompanhar a procissão e pisar nos tapetes de flores que enfeitam as cidades brasileiras que se engalanam para louvar o Santíssimo Sacramento; de pouco serve inclinar-se, cantar e aplaudir à sua passagem, se o Corpo de Cristo continua a ser agredido e profanado em nossas casas, ruas, cidades e caminhos. A festa que celebramos é uma boa ocasião para iniciarmos um processo de profunda conversão. Todos nós, das autoridades governamentais aos mais simples cidadãos, somos interpelados pela festa do Corpo de Cristo, que nos remete irremissivelmente ao corpo dos outros, de cuja guarda fomos feitos responsáveis.

Maria Clara Bingemer é teóloga, professora e decana do Centro de Teologia e Ciências Humanas da PUC-Rio. É autora de diversos livros, entre eles, ¿Un rostro para Dios?, de 2008, e A globalização e os jesuítas, de 2007. Escreveu também vários artigos no campo da Teologia. 
09/06/2015  |  domtotal.com

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