Quem é o culpado?

sexta-feira, 5 de junho de 2015

O que chamamos de arrependimento é uma das atitudes mais corajosas e libertadoras.
As primeiras páginas da Bíblia relatam de forma ao mesmo tempo realista e poética a situação humana, inclusive os dramas vividos por todas as gerações que se sucederiam. Lá dentro de nosso coração, existe o terrível drama do pecado, a possibilidade de dizer não ao projeto de amor desenhado por Deus, quando por amor e para o amor nos criou (Cf. Gn 3, 9-15). Adão e Eva refletem o que todos podemos viver, quando o mistério da liberdade se apresenta inquietante e provocante.
Chamado à própria responsabilidade, Adão joga a culpa da desobediência sobre Eva, e esta a atribui a serpente. Alguém, jocosamente, já disse que a serpente, olhando para trás, acabou ficando com todo o peso, por não encontrar ninguém para acusar. Sabemos que não foi assim, pois a figura da serpente aponta para a ação do maligno, que continuamente provoca com a tentação todos os seres humanos. Entretanto, fica o desafio da liberdade e da responsabilidade.
Não é fácil assumir o que fazemos de errado! E o que chamamos de arrependimento é, em nossa vida, uma das atitudes mais corajosas e libertadoras, ainda que marcada pela dor, e esta purifica, pois abre o coração para acolher o perdão, coisa divina! Ao nos apresentarmos diante do Senhor, com o coração contrito e humilhado, muitas vezes e sempre seremos acolhidos por aquele que não se cansa de perdoar. Só que a porta da contrição é o espaço estreito por ponde quer passar o amor de Deus, para abrir novos e inimagináveis horizontes à nossa realização nesta vida e para a eternidade.
Diante de Jesus se apresentaram continuamente grupos diversos de pessoas (Cf. Mc 3, 30-35). A multidão que o cerca é tamanha que "nem sequer podiam comer". É o primeiro e maior dos grupos, do qual emergem, pouco a pouco, os que foram chamados de discípulos. Um terceiro é formado por parentes de Jesus e um outro por mestres da lei e gente que vivia em Jerusalém. Parentes e o pessoal das rodas importantes de Jerusalém são vistos no Evangelho de São Marcos como adversários, que se contrapõem continuamente a Jesus. Os parentes acham que está fora de si e os outros, pior ainda, atribuem a Satanás o bem que é feito pelo Senhor. Este desmascara com firmeza as acusações que lhe são feitas.
Ainda bem que suas palavras anunciam que o reino de Satanás não sobrevive, pois está dividido e será destruído! A insistência dos que acusam Jesus o leva a identificar, a nosso favor, o que significa o pecado contra o Espírito Santo, fundamentalmente o não reconhecimento do Senhor e Salvador. Sabemos com São Paulo que ninguém pode chamá-lo de Senhor a não ser pela ação do Espírito Santo (Cf. 1 Cor 12, 3). Trata-se, pois, de tomar uma decisão que muda a vida!
Este mesmo apóstolo fez a experiência da conversão, que significa aceitar a responsabilidade pelos próprios pecados, submeter-se ao senhorio de Jesus Cristo e abrir-se à maravilhosa liberdade dos filhos de Deus: "É digna de fé e de ser acolhida por todos esta palavra: Cristo Jesus veio ao mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o primeiro. Mas alcancei misericórdia, para que em mim, o primeiro dos pecadores, Jesus Cristo mostrasse toda a sua paciência, fazendo de mim um exemplo para todos os que crerão nele, em vista da vida eterna" (1 Tm 1, 15-16).
E não fez pouca coisa: "Eu sou o menor dos apóstolos, nem mereço o nome de apóstolo, pois eu persegui a Igreja de Deus" (1 Cor 15, 9). Sabemos que esteve presente ao martírio de Estevão, com o qual concordava (Cf. At 7, 58 - 8, 1), ou que respirava ameaças de morte contra os discípulos do Senhor (At 9, 1). Parece que Deus tem o fraco gosto de escolher os que são piores, e assim sua obra de misericórdia fica mais patente!
Antes tinha escolhido Simão, a quem Jesus chamou de Pedro, uma rocha tão limitada que a grandeza do amor de Deus se mostrou infinita. Ele experimentou a grandeza do arrependimento libertador: "O Senhor se voltou e olhou para Pedro. E Pedro lembrou-se da palavra que o Senhor lhe tinha dito: 'Hoje, antes que o galo cante, três vezes me negarás'. Então Pedro saiu do pátio e pôs-se a chorar amargamente" (Lc 22, 61-62) lágrimas que abriram seu coração ao Senhor, a quem declarou três vezes seu amor, na confirmação de sua vocação, após a Ressurreição.
A história se repete, com lances cada vez mais provocantes, quando chega perto de nós e às nossas aventuras pessoais, marcadas por quedas e reerguimentos, vividos às centenas de vezes. Os santos, retratados na hagiografia eclesiástica com traços tão belos, foram homens e mulheres resgatados do pecado, escolhidos de famílias com currículo nem sempre admirável. Quer dizer que cabem todos no Reino de Deus e em sua Igreja, culpados e inocentes, justos e injustos, todos os que se abrirem à verdade do Evangelho, que passa necessariamente pelo reconhecimento da própria pequenez. A altivez orgulhosa é o único impedimento! Quem já visitou Belém de Judá passou pela porta da Basílica da Natividade, inclinando-se necessariamente para penetrar naquele lugar santo, gesto que se torna ícone das virtudes necessárias ao acolhimento da salvação que vem de Deus.
Mas sabemos o quanto custa, na hora da verdade, reconhecer-nos frágeis, culpados e necessitados de perdão. Há um nó a ser desatado, que se chama confissão. O orgulho pode levar-nos a não aceitar a beleza do Sacramento da Reconciliação, que nos convida a abrir o coração justamente diante de um homem, o confessor, também ele carente de perdão! Há até pessoas que se gabam de terem se confessado apenas em tempo de primeira comunhão. É uma pena ver o quanto perdem e quando buscam subterfúgios para se "confessarem", algumas delas até com um copo de bebida, ou outras drogas mais pesadas. E, infelizmente, com frequência vemos vidas desrespeitadas e expostas em público, sem o respeito que só o sigilo sacramental garante, além do fato de a confissão sempre se concluir com a sentença da absolvição!
Voltando ao Evangelho de São Marcos (Cf. Mc 3, 30-35), ao final do episódio, comparece uma pessoa, Maria, a Mãe de Jesus. A ela se aplica de forma completa o elogio de Jesus: "Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? E passando o olhar sobre os que estavam sentados ao seu redor, disse: 'Eis minha mãe e meus irmãos! Quem faz a vontade de Deus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe'” (Mc 10, 33-35). Sabemos que foi preservada do pecado justamente pelos méritos de seu Filho e que nela se realizou a profecia do livro do Gênesis: "Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela" (Gn 3,15). No entanto, fez-se pequena para que os pecadores, que somos nós, encontremos o modelo para entrar na plena comunhão com Deus: "Eis a escrava"! "Olhou para a humildade de sua serva" (Lc 1, 38-48).
*Dom Alberto Taveira Corrêa é arcebispo metropolitano de Belém do Pará.

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