Estamos dispostos a ouvir?

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Por Pedro Lea
Não é verdade que o papa Francisco se limita a dizer o mesmo que os antecessores. Acredito que o conteúdo, a doutrina, seja o mesmo, mas a intensidade, a frequência e o tom com que aborda determinados temas marca a diferença. Não é pior nem melhor; é substancialmente diferente.

Francisco é o sexto papa da minha existência. De João XXIII, não guardo memória, a não ser a construída, a racionalizada. Foi surpreendente. Teve a coragem de perceber a necessidade de reformar a Igreja, correndo o risco de não controlar toda a dimensão da ação a que deu impulso. Foi substancialmente diferente. 

Paulo VI encontrou-me na passagem da infância para a adolescência. Na minha memória, há aqui também algo de construído, mas já guardo algumas percepções diretas. Se João XXIII teve o arrojo de convocar o Concílio Vaticano II, Paulo VI teve a inteligência de o terminar com todo um programa voltado para o futuro, dando à Igreja instrumentos para estar no mundo, para o saber ler e nele intervir. Estendeu ainda as mãos aos irmãos desavindos e dotou a Igreja de uma nova consciência: a de Povo de Deus.

Foi ainda o papa que começou a sair com mais frequência do Vaticano, percebendo bem a dimensão universal da sua missão. Numa dessas viagens, a Portugal, Paulo VI enfrentou Salazar, não em Lisboa, mas em Fátima, recusando caucionar na capital um regime de ditadura. Um sinal forte de quem tem a razão do seu lado. Foi substancialmente diferente. 

Confesso que de João Paulo I pouco recordo, a não ser a fugacidade do seu papado e o seu imenso sorriso. Até nisso foi substancialmente diferente.

João Paulo II arrebatou. Estava eu na passagem da juventude para a vida adulta. Era, ao mesmo tempo, exigente e compreensivo. Recusava as meias palavras e exigia compromisso. "Não tenhais medo! Antes, procurai abrir, melhor, escancarar as portas a Cristo!". Algumas das suas primeiras palavras, ditas em tom paternal, mas que escondiam todo um pontificado: João Paulo II não teve medo das palavras, de provocar incómodo.

No momento em que é eleito, as palavras obedeciam a uma coreografia. Em clima de “Guerra Fria”, a diplomacia praticava-se entre múltiplos compromissos para que o desfecho fosse sempre politicamente correto, no respeito pelos equilíbrios. O que fazia João Paulo II? Denunciava a opressão, o comunismo, o capitalismo desenfreado; pedia resistência e cristãos empenhados na fé. O que podia a diplomacia fazer contra estas palavras desconcertantes? Nada. João Paulo II ajudou a transformar um mundo prisioneiro do pós-guerra. Foi substancialmente diferente. 

Depois foi difícil. Confesso que quando Bento XVI foi eleito, fiquei um pouco surpreendido. E surpreendido negativamente. Não acreditava que o Cardeal Ratzinger fosse a resposta para os desafios que a Igreja enfrentava. Quando baixei as resistências, no final da leitura de um livro do Papa, indicado por um amigo, percebi o erro de percepção. Bento XVI deu-me a chave para resolver parte da minha fé: a razão. Disse-me que, racionalmente, podia chegar a Deus. E isto, para os que estão mais próximos de S. Tomé, é uma luz, uma esperança. Mas há mais. Bento XVI foi também o Papa da coragem. Recordo como enfrentava os poderes instituídos. Por exemplo, em Angola, onde, ao lado de José Eduardo dos Santos, critica e denuncia a corrupção; quando ainda, em Portugal, no momento em que todos esperavam que deixasse cair alguma crítica à atuação da I República contra os católicos, Bento XVI assume um discurso integrador. Logo à chegada, ainda no aeroporto, diz que a “viragem republicana, operada há cem anos, abriu na distinção entre a Igreja e o Estado, um espaço novo de liberdade para a Igreja”.

Num dos pontos mais dolorosos do seu pontificado, quando surge a questão da pedofilia, a primeira reação geral foi a de cerrar fileiras. Ouviram-se coisas como “a pedofilia está presente em toda a sociedade, não é só uma questão da Igreja”. Surpreendentemente, Bento XVI não acusa, não dá desculpas genéricas, diz, simplesmente, que “os grandes sofrimentos da Igreja vêm justamente do interior da Igreja, do pecado que existe na Igreja”. Hoje, parece simples. Na altura, não o foi. Depois, teve a luz, como revelou mais tarde, de renunciar. Foi substancialmente diferente. 

Depois surge Bergoglio. Sorridente, humilde, arrebatador, com gestos e palavras cortantes. Mas a sua principal característica é a extraordinária facilidade com que chega às pessoas. A todas, crentes e não crentes. E isso é bom. O papa Francisco agrega, não divide, mesmo quando fala nos chamados temas divergentes.

Para alguns, o papa estará fazendo concessões à esquerda, mesmo ao marxismo. Para outros, as palavras do papa Francisco encaixam bem em determinadas agendas. Nada mais falso. As críticas do Papa, por exemplo, ao capitalismo desenfreado e às condições da pobreza não são de esquerda ou de direita. Residem numa outra categoria e numa outra exigência, longe dos partidos. Residem no mandamento novo que nos foi deixado: “Amai-vos uns aos outros como eu vos amei”. Aqui não há ideologia. Há apenas o difícil compromisso de amar o próximo, seja em que circunstância for: na dor, na miséria, no vício, na velhice, na defesa da vida humana ou, simplesmente, na contrariedade. E isto, por vezes, são experiências angustiantes.

Nesta leitura, a pobreza e o capitalismo desenfreado são inaceitáveis, pois violam a dignidade humana, a dignidade de filhos de Deus.

A conclusão parece óbvia. Os papas são chamados a uma missão, que é una, mas todos são substancialmente diferentes. A condição não os diminui nem os eleva em relação aos seus predecessores. Todos são homens, logo, pecadores, como o papa Francisco já tantas vezes sublinhou.

Talvez a discussão não deva centrar-se tanto em saber se o que papa Francisco diz é novo ou velho, de esquerda ou de direita, mas antes se estamos dispostos a ouvir, neste tempo, este papa, que está lançando pontes entre crentes e não crentes e que é substancialmente diferente?
SIR

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