Na Igreja de Francisco, a liberdade não é liberal

segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Por Matteo Matzuzzi
"Eu não vejo nenhuma justificativa teológica para mudar a atitude da Igreja com relação à readmissão dos divorciados em segunda união aos sacramentos". O cardeal Sean O´Malley, frei capuchinho, arcebispo de Boston e único norte-americano a fazer parte da consulta papal chamada a refundar a Cúria Romana, freia os episcopados prontos para fazer do Sínodo uma espécie de Vaticano III para derrubar a moral sexual católica e, dada a oportunidade propícia, arquivar para sempre também a Humanae vitae, do Papa Paulo VI.

Alguns, como o bispo de Trier, Stephen Ackermann, aspirante a líder dos bispos alemães, já deu a entender isso. Tudo motivado pela necessidade de se adequar ao espírito do tempo. Razão que assusta o cardeal O´Malley, entrevistado pelo vaticanista John Allen para o Boston Globe: "A Igreja não pode mudar as suas posições de acordo com os tempos". Eis por que é melhor tirar da cabeça a idéia de que Francisco realiza viradas históricas sobre contracepção, homossexualidade e aborto.

O purpurado de hábito é um homem prudente, distante da linha dos "conservadores abertos ao mundo" que tem no cardeal arcebispo de Nova York, Timothy Dolan, o seu principal representante. Acima de tudo, O´Malley é muito próximo de Francisco. Eles se conhecem há muito tempo, "é o único que o conhecia bem antes da eleição", observa Allen. O capuchinho fala espanhol, começou a fazer seu trabalho missionário nas Ilhas Virgens.

Esse aspecto não é nada marginal, explica Massimo Faggioli, historiador do cristianismo "da escola Vaticano II" da University of St. Thomas, de Minneapolis: "O´Malley atua como bispo de uma Igreja composta em grande parte por latinos, que fogem do paradigma clássico conservadores-liberais. É um católico social como Francisco, basta olhar para a sua atitude sobre justiça social e economia".

Suas palavras ao jornal Boston Globe dão vazão a um descontentamento com relação ao papa que veio quase do fim do mundo, que não dá indícios de diminuir com os meses que passam desde sua posse ao sólio de Pedro. Tudo começou com o convite dirigido por Francisco a não obcecar os fiéis com uma multidão de doutrinas desarticuladas e a não falar sempre de aborto, contracepção e casamento gay, já que, sobre tais questões, "a posição da Igreja já é conhecida".

Instruções que serviam de prelúdio para uma mudança de rota: menos baionetas desembainhadas nos púlpitos e mais pregações sobre pobreza e miséria; menos marchas contra o governo federal e mais saídas para a periferia. Basicamente, se trataria de arquivar uma longa temporada que viu o episcopado dos Estados Unidos muito sensível às batalhas em defesa dos princípios inegociáveis e comprometido com uma dialética contínua (às vezes dura) com as instituições políticas. Daí a origem do mau humor contra o pontífice argentino, muitas vezes expressado publicamente até mesmo por alguns prelados de renome, como o arcebispo da Filadélfia, Dom Charles Chaput.

"O´Malley – explica Faggioli – é um homem refinado, não compartilha o descontentamento generalizado que existe com relação a Francisco, mas sabe que o problema da Igreja não é o da reforma da disciplina dos sacramentos, nem pensa que cada problema pode ser resolvido dizendo ´sim´ às posições típicas da cultura liberal". O´Malley é consciente, no entanto, que "Francisco tem um problema americano", acrescenta o nosso interlocutor: com relação à complexa realidade dos EUA, "não se sabe o que ele pensa, o quanto ele sabe a respeito, o quanto ele a controla".

Será possível entender algo a mais – segundo Faggioli, autor de "Papa Francesco e la chiesa-mondo" (Ed. Armando) – a partir da escolha que, dentro de um ano, o papa vai fazer para a cátedra episcopal de Chicago, nomeação que, não por acaso, o Wall Street Journal da sexta-feira passada também apontava como altamente significativa: "Decisão de absoluta importância. Essa cidade se tornou o símbolo da luta entre duas culturas. De um lado, a que teve como protagonista o cardeal Joseph Bernardin; de outro, personificada pelo cardeal Francis George. O primeiro se tornou o ícone de um certo catolicismo conciliar não necessariamente liberal; o segundo foi o artífice da virada à direita da Conferência dos Bispos dos EUA".

É por isso que "o nome do sucessor de George dirá muito sobre o tipo de Igreja que Francisco tem em mente e, especialmente, fará entender o grau de controle que ele tem sobre a Igreja norte-americana. Até agora, o único procedimento tomado com relação aos EUA foi a exclusão do cardeal tradicionalista Raymond Burke da Congregação para os Bispos".

As relações de Bergoglio com o mundo anglo-saxão – continua Faggioli – "são muito limitados. É um problema cultural. Ele teve muito poucas relações com essa realidade. E, além disso, ele é um latino-americano, o que envolve uma certa quantidade de antiamericanismo. Nos EUA, sabe-se muito bem disso, só que não se pode acusar explicitamente o pontífice de ser anti-ianque. É uma questão latente". São muitos os campos em que Francisco está longe desse mundo, "basta pensar na consideração que ele tem do excepcionalismo norte-americano".

Um ponto de contato entre Francisco e Conferência dos Bispos dos EUA parecia ter sido encontrado em novembro passado, quando foi eleito como chefe dos bispos Dom Joseph Kurtz, bispo de Louisville. Moderado e de perfil adequado à mediação, muito mais do que o "muscular" Dolan, dizia-se. Um prelado flexível e capaz de adaptar a linha do episcopado à nova agenda de Bergoglio e, ao mesmo tempo, de estabelecer um profícuo diálogo com a Casa Branca obamiana.

Mas no primeiro teste prático, no fim de dezembro, Kurtz enviou uma dura carta ao presidente sobre a entrada em vigor da reforma da saúde. Entre as bênçãos de rito, o chefe dos bispos dos EUA imputava a Obama o fato de violar o direito à liberdade religiosa dos seus cidadãos, "First freedom". Não exatamente uma estreia conciliadora.
Il Foglio, 12-02-2014.  17/02/2014  |  domtotal.com

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