ONU, denúncia e a ingerência no Vaticano

domingo, 9 de fevereiro de 2014

Contrariamente ao relatório da ONU sobre os abusos sexuais na Igreja, espera-se de organismos internacionais uma busca mais atenta da verdade e uma luta inteligente contra o não reconhecimento dos direitos dos menores.
Por Enzo Bianchi 
Há apenas um ano, às vésperas da inesperada renúncia de Bento XVI, a Igreja Católica estava no meio da tempestade por causa, de um lado, da progressiva e cada vez mais dramática emergência do escândalo dos abusos sexuais contra menores cometidos por seus membros e, de outro lado, do entrelaçamento dessa chaga com eventos financeiros e intrigas curiais nada cristalinas, quando não penalmente relevantes.

Esperar que uma mudança de pontífice – por mais surpreendente em termos de diversidade de estilo e de abordagem pastoral – fosse suficiente para completar a obra de restauração iniciada por Bento XVI e para fazer justiça a décadas de silêncios e de subestimação da gravidade dos comportamentos era um sintoma ao menos de ingenuidade, se não de vontade de remoção apressada da questão.

Sobre esse tema, é preciso reconhecer, as últimas décadas viram uma profunda mudança cultural, em que a subjetividade e os direitos dos menores emergiram com força, gerando um julgamento moral de grave condenação para determinados comportamentos: em toda a sociedade ocidental, incluindo as Igrejas, os delitos de pedofilia se tornaram "delicta graviora", crimes dos mais graves, e a condenação os atinge com uma força desconhecida anteriormente.

Agora, o documento do Comitê da ONU sobre os Direitos da Criança reacende necessariamente a atenção sobre os abusos contra os menores por parte de pessoas – padres, religiosos, educadores – com responsabilidade dentro da Igreja Católica. No entanto, não se deveria esquecer que os dados atestam como o percentual de tais crimes cometidos dentro das instituições católicas não se distancia do relativo a qualquer tipo de instituição para menores, especialmente se prevê a convivência cotidiana entre estes e os educadores.

A difusão da patologia pedófila na sociedade em geral também é independente da prevalência ou não da cultura, das tradições e das instituições católicas em um determinado país. Nessa implacável atenção aos crimes de tantos educadores católicos, é motivo de lamento constatar que, muitas vezes, privilegiam-se ênfases escandalosas e ignoram-se ou menosprezam-se dados de fato ou iniciativas que tentam remediar e sanar essa horrível chaga.

Quase nunca, por exemplo, nos interrogamos sobre o que fizeram - ou deixaram de fazer – também as instituições diferentes da Igreja Católica para oferecer uma adequada reparação não só econômica às vítimas, para intervir para prevenir a recorrência de tais delitos, para analisar de modo documentado e interpretar o fenômeno, para cuidar também dos culpados, muito frequentemente vítimas de abuso, também eles, durante a sua infância.

Como se viu nesses anos, não basta invocar e implementar uma "tolerância zero" com relação a determinados comportamentos: é preciso fazer com a devida repressão seja precedida e acompanhada por uma obra cotidiana de educação e de elaboração de uma cultura do respeito pela dignidade de cada ser humano, começando pelos menores e mais indefesos, mas incluindo também os culpados de crimes hediondos.

Nesse sentido, o relatório do Comitê da ONU sobre o comportamento do Vaticano em mérito do abuso de menores não parece ajudar a assunção de responsabilidade e consciência, nem parece reconhecer o que foi feito nesses últimos anos – e não só nos últimos 10 meses – pela Igreja Católica para sanar uma ferida que continua incurável para as vítimas, mas que deve ser medicada, como necessária prevenção, para que não se repitam abominações semelhantes.

O documento não ajuda, porque parece assimilar totalmente o Vaticano e as Igrejas locais, padres individuais, bispos e Conferências Episcopais inteiras, comportamentos de instituições religiosas que remontam há décadas e eventos de atualidade; não ajuda, porque parece ignorar os esforços realizados e parece se ater apenas a desastres causados; não ajuda, porque insere na necessária estigmatização da chaga da pedofilia outras questões éticas que não são pertinentes, do aborto à homossexualidade.

Como se pode, falando de defesa dos menores, passar a criticar a Igreja Católica pela sua posição firmemente contrária ao aborto? E o que isso tem a ver o tipo de abordagem teológica ou pastoral com relação à homossexualidade com a depravação da pedofilia? E a qual outro Estado membro ou observador junto à ONU se pede explicitamente que mude a própria Constituição ou o código civil ou penal, como se faz com a Santa Sé, exigindo que ela modifique o Código de Direito Canônico?

A impressão que surge da leitura dos trechos do documento confiados à mídia é que se quis enfrentar um mal certamente detestável e tenaz não se confrontando com a instância eclesial de modo franco e construtivo em vista de uma batalha comum para extirpá-lo, mas reiterando condenações já expressas, ignorando mudanças ocorridas e considerando mais ou menos explicitamente o interlocutor católico como uma contrapartida que não colabora com a solução do problema, mas o aumenta por causa da sua própria abordagem ética.

Infelizmente, há alguns anos, pode-se constatar que, por parte de algumas instituições políticas ocidentais, está crescendo uma hostilidade anticristã que – não acolhendo a mensagem ética, especialmente da Igreja Católica – acaba acusando-a de comportamentos que, se fizeram parte do passado, hoje são condenados e, tanto quanto possível, prevenidos e impedidos.

Surge, então, uma pergunta: por que a ética cristã, em vez de ser ouvida e, depois, eventualmente, contestada ou rejeitada, torna-se uma razão para atacar de modo preliminar a Igreja Católica e a sua busca de caminhos de humanização e de relações interpessoais autênticas, em defesa da vida e da dignidade de cada um? Francamente, esperávamos de organismos internacionais uma busca mais atenta da verdade e uma luta inteligente contra o não reconhecimento dos direitos dos menores.

Não agrada a ninguém prosseguir com esquemas ideológicos sobre tragédias semelhantes: certamente não às vítimas, nem à Igreja, mas muito menos à sociedade civil, que evita, de tal modo, fazer perguntas fundamentais sobre uma ética compartilhada e sobre a degeneração de um clima que despreza o outro e ofende o mais fraco.
La Repubblica, 06-02-2014.
Enzo Bianchi é monge e teólogo.
07/02/2014  |  domtotal.com

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