A Igreja no Brasil e a nova Encíclica

terça-feira, 14 de julho de 2015

Resta-nos esperar que a Igreja retome sua presença na sociedade de forma solidária e revolucionária.
Por Sérgio Ricardo Coutinho*
Não estamos nos referindo à Laudato si’ “sobre o cuidado com a casa comum”, mas ao discurso profético, político e social que Francisco pronunciou no encerramento do II Encontro Mundial dos Movimentos Populares em Santa Cruz de la Sierra, Bolívia. Podemos até arriscar a dizer que é “um ensinamento novo dado com autoridade” (Mc 1,27).
Depois de escutarmos muito da boca de vários Papas sobre os perigos da “ditadura do proletariado” (comunismo) e da “ditadura do relativismo” (modernidade), finalmente agora um papa teve a coragem de denunciar a “ditadura sutil” do atual sistema capitalista neoliberal globalizado que vai deixando suas marcas e seu “cheiro” podre na sociedade e na natureza: o “esterco do diabo” (em latim, stercore diaboli, um bom nome para esta “Encíclica”) onde “reina a ambição desenfreada por dinheiro”.
Logo no início de sua fala, Francisco soube, por meio do Cardeal Peter Turkson, presidente do Pontifício Conselho “Justiça e Paz” que haviam muitas pessoas na Igreja “que se sentem mais próximos dos movimentos populares”. E exclamou: “Muito me alegro por isso! Ver a Igreja com as portas abertas a todos vós, que se envolve, acompanha e consegue sistematizar em cada diocese, em cada comissão ‘Justiça e Paz’, uma colaboração real, permanente e comprometida com os movimentos populares”. Daí o convite: “Convido-vos a todos, bispos, sacerdotes e leigos, juntamente com as organizações sociais das periferias urbanas e rurais a aprofundar este encontro”.
A questão que se coloca é se bispos, padres e leigos da Igreja no Brasil aceitam este convite do Papa.
O discurso do Papa se dá no momento em que uma nova pesquisa apresenta a Igreja Católica em 3º lugar como “instituição confiável” (61%) atrás das Forças Armadas (73%) e da OAB (66%), respectivamente, subindo uma posição em relação ao ano passado (naquela oportunidade alcançou o índice de 57%).
Além disso, acontece também dentro de uma conjuntura em que vários setores católicos cada vez mais continuam se alimentando das teses “comunistas” aventadas pelos novos ideólogos Olavo de Carvalho e Pe. Paulo Ricardo.
Isto ficou muito evidente pelo que vimos recentemente, protagonizado pelos bispos de São Paulo (Regional Sul 1 da CNBB), com as respectivas notas sobre as “manifestações de desrespeito à consciência religiosa e ao símbolo maior da fé cristã, Jesus crucificado” (a crucifixão de uma transexual na última Parada Gay em São Paulo) e pela retirada da palavra “gênero” dos Planos Municipais de Educação para conter uma “revolução cultural”, de tipo gramsciana, em pleno desenvolvimento.
Sobre a luta contra a chamada “ideologia de gênero”, muitos bispos, padres e grupos de leigos trabalharam intensamente, formando “grupos de pressão”, junto aos vereadores para vencer o “novo mal” que deseja destruir a família cristã.
É possível afirmar a existência de uma “afinidade eletiva” entre estes setores católicos e o “Cunha Party” (é o nosso Tea Party) com a bancada BBB (Boi, Bala e Bíblia) do Congresso Nacional. Desta forma, a presença pública da Igreja no Brasil parece retroceder à períodos obscuros e em nada se parece com o modelo de “Igreja acidentada” desejado por Francisco.
Nesta semana, uma das Pastorais Sociais mais antigas do Brasil, juntamente com o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), estará comemorando seus 40 anos de atuação: a Comissão Pastoral da Terra (CPT).
Com uma história rica de lutas e de testemunhos (entre estes muitos deram sua vida, como Pe. Josimo Tavares) junto aos camponeses e camponesas no Brasil, o que vemos hoje é uma forte rejeição de seus membros e de sua metodologia por vários bispos, padres e leigos. Muitos associam o trabalham da CPT com o MST e a Via Campesina, movimentos vistos como braços do “bolivarianismo” e de destruição do direito natural à propriedade privada. Os setores eclesiais que mais rejeitam são os que estão localizados onde o agronegócio está firmemente estabelecido (Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Goiás, Rondônia, Pará, Amazonas).
O mesmo se aplica ao CIMI. Apesar das palmas e dos agradecimentos recebido por D. Erwin Krautler, após leitura do relatório de atividades do CIMI na última Assembleia Geral da CNBB, o que se vê na prática é um distanciamento de bispos, padres e leigos em relação aos compromissos de defesa das populações originárias, especialmente também nas regiões de forte presença do agronegócio.
Com esta forma de atuar, estes setores continuam a longa e contínua tarefa de “colonização”. Sobre isso o Papa Francisco reconheceu: “‘Quando o Papa fala de colonialismo, esquece-se de certas ações da Igreja’. Com pesar, vo-lo digo: Cometeram-se muitos e graves pecados contra os povos nativos da América, em nome de Deus. (...) Como São João Paulo II, peço que a Igreja ‘se ajoelhe diante de Deus e implore o perdão para os pecados passados e presentes dos seus filhos’. E eu quero dizer-vos, quero ser muito claro, como foi São João Paulo II: Peço humildemente perdão, não só para as ofensas da própria Igreja, mas também para os crimes contra os povos nativos durante a chamada conquista da América”.
O problema é que estes crimes continuam por pura omissão, muitas vezes, por parte de Igrejas diocesanas e paroquiais, apesar das muitas notas redigidas pela presidência da CNBB.
Já está muito evidente o modelo de Igreja que Francisco deseja e este se parece muito com as práticas do beato D. Oscar Romero e do Pe. Luis Espinal, que foi homenageado por ele também na Bolívia.
Diante desta conjuntura, resta-nos esperar que a Igreja no Brasil retome sua presença na sociedade de forma profética, solidária e “revolucionária”, que não se esqueça de suas opções preferenciais, conforme nos faz lembrar o próprio Papa Francisco:
“Peço-vos também a todos, crentes e não crentes, que se recordem de tantos bispos, sacerdotes e leigos que pregaram e pregam a boa nova de Jesus com coragem e mansidão, respeito e em paz; que, na sua passagem por esta vida, deixaram impressionantes obras de promoção humana e de amor, pondo-se muitas vezes ao lado dos povos indígenas ou acompanhando os próprios movimentos populares mesmo até ao martírio. A Igreja, os seus filhos e filhas, fazem parte da identidade dos povos na América Latina. Identidade que alguns poderes, tanto aqui como noutros países, se empenham por apagar, talvez porque a nossa fé é revolucionária, porque a nossa fé desafia a tirania do ídolo dinheiro”.
*Sérgio Ricardo Coutinho é professor de História da Igreja no Instituto São Boaventura de Brasília e de 'Serviço Social, Religião e Movimentos Sociais' no curso de Serviço Social do Centro Universitário IESB de Brasília.
14/07/2015  |  domtotal.com

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